6.6.09

God is on TV



Rede de Intrigas é um manifesto. O diretor Sidney Lumet mostra, de forma sarcástica e cínica, as principais competências da televisão: entreter descomprometidamente, promover o consumismo e domesticar as massas. A televisão é um ícone da pós-modernidade.

As sociedades pós-modernas vivem saturadas pela informação. A publicidade estimula o consumismo personalizado e a informação encontra-se dispersa em todos os espectros da vida social. A regra é ser atualizado. No entanto, esta ânsia por informações deixa o indivíduo pós-moderno ansioso, inseguro. Ele é um indivíduo atomizado, desprovido de uma subjetividade densa. Raso como um pires.


Desta forma, o sujeito se separa do todo e passa a ser um terminal de informações isolado, pois a massa pós-moderna não é homogênea, não se caracteriza mais por discursos comuns, ideológicos, que serviam para criar grandes agrupamentos humanos sob uma mesma bandeira. O sujeito é estimulado a ser único, autêntico, mas paradoxalmente ele não é tão diferente da massa quanto julga ser. A ilusão da individualidade pelo consumo é vendida como se pudéssemos nos apropriar de diferentes egos da mesma forma como trocamos de roupa ou compramos um carro novo. Se os grandes discursos estão em decadência, resta apenas uma guerra a ser travada. Uma guerra espiritual pela essência do ser humano. A grande questão que se coloca hoje é como permanecermos humanos diante da opressão de nossas próprias vidas, já que os antigos “fins” e “verdades” já não nos servem mais.



O filme Rede de Intrigas demonstra magistralmente a situação em que os indivíduos desertificados da atualidade encontram-se em relação aos meios de comunicação. Valorizamos demais as imagens e não temos tempo para informações mais complexas, densas, ou simplesmente não as desejamos mais. Estamos seduzidos pelos discursos da mídia televisiva. Como é dito em uma cena do filme, não há mais um sistema, mas vários sistemas interconectados que já perderam o controle de si mesmos. Rubem Alves, em seu texto intitulado “Tecnologia e Humanização”, afirma que a grande mudança ocorrida no século dezenove foi a subordinação da natureza ao projeto humano, através da técnica. A técnica passou a ser um instrumento ativo de transformação do real visando o ideal. A tecnologia seria a ponte que ligaria o “ser” ao “dever-ser”.

No entanto, o que podemos atestar atualmente é que esta mesma técnica perdeu seu rumo original e se tornou ela mesma um fim em si própria. A retroalimentação dos meios acabou com os fins. A razão tornou-se meramente instrumental, perdendo seu conteúdo idealista. A cultura ocidental tem sido até hoje uma corrida em busca do simulacro perfeito da realidade. Apagar a diferença entre real e imaginário, ser e aparência, “ser” e “dever-ser”. No entanto, está claro que as exigências do imaginário não podem ser supridas pela realidade. Foi em decorrência disto que Boaventura de Souza Santos, em seu texto intitulado “O Social e o Político na Transição Pós-moderna”, afirmou que a humanidade, do início do século XX em diante, preocupou-se apenas em tornar parcialmente realidade algumas aspirações da razão, deixando de lado o irrealizável do projeto iluminista e dando início assim ao que nós chamamos hoje de pós-modernidade, o fim das promessas modernas.




Esta noção de que somos impelidos ao ideal em detrimento do real está presente na película em seus momentos finais. A televisão é um propagador de ideais, de sonhos. O “messias louco” em Rede de Intrigas, ao mudar o teor de sua mensagem de indignação para uma visão de anulamento do sujeito, pautado na constatação da pequenez do indivíduo diante destes sistemas que se entrecruzam, começa a perder sua audiência. As pessoas não queriam mais ouví-lo porque dentro delas existia uma chama de revolta contra o mundo que nem mesmo os meios de comunicação de massa poderiam acabar. Canalizá-la, sim, como faziam, mas destruí-la não. Surge uma esperança no futuro da humanidade.

Não compartilho desta esperança, no entanto. Já dizia Nietzsche que somos um eterno “vir-a-ser”, um projeto inacabado. Somos dilacerados por pulsões constantes que escapam do nosso controle e que nos levam sempre a querer mais. “O homem preferirá ainda querer o nada a nada querer”, dizia o filósofo destruidor de ídolos. Sendo assim, somos impelidos a querer sempre mais da realidade, mesmo que isto não seja possível. Logo esta chama de inconformismo não nos leva necessariamente a momentos melhores. Ela serve também para enganar e fazer-nos crer que um dia todos os nossos desejos serão finalmente transformados em realidade. Doce ilusão. A técnica não conseguiu consolidar este projeto humano de simulacros, de tornar realidade os anseios da alma, e resume-se agora a prolongar estes ideais no homem, que, por sua vez, cada vez mais sente no âmago de seu ser uma angústia, um sentimento de que estes ideais não passam apenas de sonhos. Ainda assim, ele prefere continuar iludindo-se. E assim o sistema se mantém, utilizando-se justamente desta paixão inconformada.

Por outro lado, existem alguns pensadores otimistas, como Gilles Lipovetsky. Para este teórico da hipermodernidade, “precisamos ser muito prudentes com essa concepção de que o consumidor e o cidadão seriam indivíduos totalmente remodelados e fabricados pela mídia”.

“Acho que a mídia tem poder demais nos comportamentos, mas também sobre a informação. Para a massa, o essencial é a televisão. De um lado isso pode orientar comportamentos, mas, de outro, isso trás uma série de informações. Essas informações criam indivíduos mais reflexivos a longo prazo, mais capazes de comparar aquilo que são e aquilo que os outros são. Acho que devemos nos livrar de um modelo behaviorista da televisão e da mídia, como se bastasse multiplicar as mensagens para que os indivíduos as aceitassem.”, afirma o filósofo. Assim conclui: “Os indivíduos podem tomar distância, e creio que a mídia pode orientar os comportamentos de um lado e favorecer a individualização dos seres de outro.”.

Qual visão está certa? Não creio que “certo” e “errado” sejam ainda pertinentes. A única certeza que podemos ter é que esta é uma pergunta que jamais será respondida de uma única forma.



Raul Galhardi