25.5.08

O ósculo





O ósculo se abre. E, de longe, contorna uma imagem. Leves choques acendem as extremidades de um corpo – o beijo de uma boca áspera. Deslocamento inerte – a luz imprime rastros bastante palpáveis. Atrasos – ondas curtas de euforia inócua. O foco é pleno, mas não distingue a figura que dissipa esse calor incômodo. Sons abafados ressoam muitas vezes, sem volume. Sem eco. Sem resposta. No frio enlace, algo me escapa. O ósculo se fecha.




André Drago
A pintura, de título "Ósculo", é de autoria de Vera Cymbron, que mantém o blog "Sentidos Ocultos"

22.5.08

Excerto

Um olhar para si


Ser humano é angustiar-se. Não há existência que não viva isso constantemente.

No entanto, viver é para poucos. Viver sinceramente, eu digo.

Por que sempre é possível refugiar-se nas ilusões, ou desistir.

Não condeno aqueles que desistiram. Condeno aqueles que se iludem.

Por que sei que viver é demasiado difícil e requer um exercício intenso de afirmação de si mesmo, mesmo sem ter aonde apoiar-se. Mas odeio aqueles que se iludem porque mentem para si mesmos. Ambos negam, porém.

A depressão, o momento máximo da angústia, faz parecer que vale a pena desistir.

Entretanto, aqueles que passaram por ela sabem que nada pode durar para sempre. O problema é se durar por tempo demais.

Não condeno os que desistem, mas não pretendo fazê-lo agora.

Hoje eu sou o escaravelho.




ÁPORO

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.


Carlos Drummond de Andrade



Por Raul Galhardi

16.5.08

Déspico

Ao caminhar em sua direção, a madeira daquela velha ponte rangia um pouco, mas isso parecia não atrair sua atenção. Parei um pouco antes de chegar ao seu lado, ainda num ângulo em que ele não pudesse me ver e disse "Oi". Ele calmamente se virou e, lentamente, subiu sua cabeça espiando-me por completo, até chegar ao meu rosto, calado. Fiquei um pouco constrangido e para disfarçar meu embaraço, sentei-me ao seu lado. Ele virou-se novamente e voltou a contemplar o oceano. Meio sem saber o que fazer, resolvi dizer algo:

- Eu sempre passo aqui quando venho buscar minha mãe. Ela vive na casa para idosos perto da cidade, logo no começo da estrada. Os médicos dizem que o clima daqui faz bem para ela.

Não há resposta. Aquela enigmática figura continua olhando para frente, ignorando-me. Talvez fosse um bruto ignorante. Talvez fosse só alguém sensível que estivesse admirando a paisagem, imerso em seus pensamentos, como se de fato eu nem estivesse ali. De qualquer forma, minha curiosidade atingia limites incontroláveis, e continuei:

- Sempre quando venho para cá e atravesso o porto, vejo você aqui. Neste mesmo local, sentado com as pernas para fora olhando para o mar. Há 5 anos, todos os finais de semana, eu faço este mesmo trajeto e sempre o vejo aqui. Parece até que você passa o dia inteiro aqui, pois já vim em diferentes horários pegar e deixar minha mãe e sempre o vejo. Após todo este tempo, não consegui controlar minha curiosidade. Enfim, posso lhe perguntar por que permanece neste mesmo local, nesta mesma posição, todos esses dias?

Ele parece continuar me ignorando. Não esboça reação alguma. Após um tempo, paro de olhá-lo e volto-me para frente, vendo o sol que se põe.

- O oceano traz uma sensação de grandeza, de unidade. Tudo está conectado por ele. Não só aquelas ilhas que você vê logo adiante, mas também todos os continentes presentes neste mundo. Se você conseguir imaginar isso, para de sentir-se sozinho. Às vezes fico pensando se alguém também olha para mim dessas ilhas.

Ele diz tudo isso com seu olhar ainda reto, imóvel e perdido, como se eu ainda não estivesse ali ao seu lado. Não digo nada. Após um breve momento, ele continua.

-É particularmente bonito à noite, quando as luzes de todas essas ilhas acendem e eu penso que elas estão tentando se comunicar comigo. Mas logo percebo que isso não faz sentido algum e volto à minha incômoda busca.

Eu me viro para ele, que continua.

- Mas seria mentira se eu dissesse que venho aqui apenas para contemplar esse gigante, para conectar-me. Algumas vezes pensei sinceramente em me jogar nestas àguas, mas não tive coragem o suficiente.

- Por que você está me dizendo isso?

Ele se vira e olha para mim, com a mesma calma e leveza do gesto anterior. Seu olhar é triste e sereno.

- Fiquei pensando se devia falar com você ou não. Resolvi por falar. Não era isso que você queria?

- Você não se sente incomodado por estar contando essas coisas para um estranho?

- Não, por que na verdade você não me é mais estranho do que qualquer pessoa desta cidade, daquela ilha, ou de qualquer uma destas ilhas e lugares deste mundo. Não se pode conhecer verdadeiramente ninguém.

Ele se volta para frente novamente.

- Quando fico aqui, olhando para o mar, lembro que existem tantos lugares neste mundo que eu não conheço e que nunca irei conhecer. Tantas pessoas, tantos momentos... como viver sabendo disso? Só um ser que pudesse estar em todos os cantos e que vivesse para sempre poderia absorver tudo que este mundo tem para nos proporcionar, mas parece que Deus foi egoísta ao guardar apenas para ele esse privilégio. Apenas um ser imortal e onipresente poderia desfrutar do todo. Eis então que surge uma questão: como continuar vivendo sabendo que Deus existe e que eu não sou ele? Como existir pela metade, imperfeito, sabendo que a perfeição existe? É demasiado doloroso.

- Mas não pense que eu acredito em Deus. Deus é um desespero que começa onde todos os outros terminam. Seria uma desonestidade intelectual se eu, sabendo de tudo isso, me rendesse ao transcedente, este lugar onde todos chegam após exaurirem a razão. Por isso continuo na minha busca incessante. Hunf. Parece que a felicidade e a quietude não fazem parte dos "planos" da existência...

Silêncio.

Quem é este homem?

- Você não se acha extremamente pessimista? Não quero discordar de você, mas não é possível enxergar as coisas de outro modo?

- E como poderia não sê-lo? Como sorrir enquanto todos não forem felizes? Um só será feliz se todos forem. Todos os seres são infelizes, mas quantos realmente sabem disso?

- Eu sou feliz.

- Você está satisfeito?

- Sim.

- Nada pode melhorar?

- Pode...

- Vê? É disso que estou falando. Somos movidos pelas nossas vontades, nossos desejos. Estamos sempre insatisfeitos. Não podemos simplesmente parar de desejar. A vontade se manifesta sempre em direção a algo, tangível ou não. Uma alternativa para isso seria a supressão total dos desejos, o anulamento da vontade, o ascetismo. Mas não acredito que isso seja possível, desejável e muito menos natural. Prefiro viver honestamente o meu sofrimento a ter que me refugiar da própria vida. O inferno está dentro de nós mesmos, não nos outros.

- Mas eu posso dizer pelo menos que sou mais feliz do que você...

- Sim, pode. A felicidade só é possível através do vislumbramento de uma desgraça maior, neste caso, a alheia. O limite de uma dor é outra maior.

Eu fico esperando que continue, mas ele se cala. Durante instantes, ele permanece inerte olhando para o horizonte. Estou espantado com este ser. Como pode ser tão calmo dizendo tudo isso? Eu penso em perguntar algo, mas não sei se devo. Hesito, mas, por fim, pergunto:

- Você não está esperando demais da vida, pedindo demais? Você quer tudo, a plenitude.

- E porque não querer a plenitude? O fim dos anseios, das dores, a felicidade de todos...

- Por que não é assim que a vida é.

- Então eu renego esta vida em nome do que ela não é. É por ela não ser tudo o que poderia que eu não a aceito. E busco. Espero conseguir sair daqui, incompleto e vivo. Tornar-se completo significaria unir-me ao oceano.

Após ouvir isso, percebo que já está anoitecendo. Fico encarando ele por alguns segundos, esperando algum gesto, algo mais. Olho para o relógio. Devo ir. Penso em dizer algo, mas o que poderia dizer? Acredito que tudo já foi dito. Pergunto seu nome.

- Meu nome é ...

Despeço-me e levanto. Saio dali. Ao caminhar em direção ao carro, olho para trás. O vejo na mesma posição anterior, como se eu não houvesse passado por ali. Embora não conheça este homem, desejo que ao retornar ele ainda esteja lá. Espero que ele não desista de buscar e não se entregue ao oceano.


por Raul Galhardi

5.5.08

Êxtase e Estase

esperamos o inevitável
esperamos o improvável
reunimo-nos em fila
seres estáticos

abrem-se frestas
na rija crosta de aço
fluidos misturam-se no asfalto
união de espíritos
colisão de carros

orgasmo do acaso
sujeitos do movimento
objetos do contato

estranho rito
de homens civilizados
aguardam docilmente
a selvageria do ocaso
sem nome, número ou lastro

propósitos misteriosos
o destino é sempre o ventre
quando devemos reconhecê-lo
e negá-lo

misticismo e gás carbônico
transe induzido pelo tráfego
seres extáticos


por André Drago

4.5.08

Aqui estou eu novamente do lado de fora de um hospital. Não gosto de hospitais. Não gosto de ver todos de branco, nem de imaginar as doenças que circulam lá dentro. Sabia que o branco no Japão simboliza a morte? Parece que os médicos descobriram.

Sento na calçada e encosto na grade do cemitério. Acendo um cigarro e dou uma tragada. A marca não interessa, pois o resultado final é o mesmo. Começo a pensar no quão mórbido (ou apropriado) é ter um cemitério ao lado de um hospital. ''Economiza tempo'', penso. Deus, como sou desprezível! Mudo logo de pensamento e lembro por que estou aqui. Não estou aqui porque gosto de hospitais, ou cemitérios, ou por que gosto de fumar sentado na calçada. Estou aqui por causa de Luana.


Nunca me importei com ninguém. Gosto disso. Assim ninguém se importa comigo também e com as besteiras que eu faço. Não que eu não precise de alguém, seja um lobo solitário ou algo assim, mas é que já me acostumei a viver dessa maneira. Com Luana é diferente. Imagine algo belo capaz de fazer sua imaginação voar. Nada se compara à Luana. Penso que fui um felizardo em poder viver ao seu lado. Fui? Não! Aqui estou eu de novo com minha amargura, meu pessimismo, falando dela no passado. Preciso pensar que tudo irá melhorar, que tudo terminará bem, pois... como é que é mesmo a frase? ''Tudo sempre acaba bem. Se não está tudo bem, então ainda não acabou.'' Isso. É assim que eu preciso pensar.


Quando percebo já estou acendendo outro cigarro. Ansiedade. Levanto e ando até a porta do hospital. Penso em entrar. Não. Eles não precisam de um bêbado fedendo a cigarro. Douglas e Verônica não precisam disso, Lúcia também não e muito menos Luana. Porra, mas que merda está acontecendo lá dentro? Que angústia! Sempre foi assim. Luana, por causa de seu problema, sempre necessitou de cuidados especiais. Eu, sempre que possível, a ajudei e estive ao seu lado, se bem que este ''sempre que possível'' não está adiantando muito agora.


Apago o cigarro e jogo a bituca no chão. Ando de um lado para o outro em frente à porta, pensando no que deve estar acontecendo lá dentro. ''Calma, não é a primeira vez que isto acontece''. Preciso me acalmar. Sento novamente encostado na grade esperando que nenhum pombo cague na minha cabeça.


Luana... que mulher! Que ser humano! Condeno Deus por ter feito isto com ela! Não me importo com nada, nem comigo, mas apenas com ela. Chorei ao seu lado quando sentia dor, segurei sua mão e não fiz nada. Nada do que precisasse. Ela dizia, ''Seu carinho basta.''. Não! Isso é mentira! Nunca se ama o suficiente, neste caso. Não quero chorar, mas parecia que não era isso que o futuro reservara para mim.


Eu não acreditava no que via. Estava em pé, mas minhas pernas tremiam. Não pensava em nada. Não conseguia sentir nada ao meu redor. Os pedestres aterrorizados, os enfermeiros e médicos desesperados, os repórteres curiosos e Douglas e Verônica aos prantos ajoelhados ao lado do corpo da filha, esmagado na calçada.


Aconteceu muito rápido. Ouvi um barulho de vidro se quebrando, e, antes mesmo que eu pudesse me virar ou a jovem que vendia flores ao meu lado gritar, ela já estava na calçada. A poucos metros de mim, eu via o corpo de Luana espatifado contra a calçada. Muita correria. Logo os enfermeiros saíram do hospital para ver o ocorrido e tentar fazer algo. Inútil. O caos já estava instaurado. Algumas pessoas vomitavam. Era horrível! Um pesadelo! E eu não conseguia fazer nada...


Flashes, câmeras, fios e mais câmeras. De onde saiu tudo isso? Acho que enquanto permanecia inerte, sem cair ou ficar de pé, a imprensa havia chegado. Abutres! Estava coberto pela multidão e acho que foi por isso que Douglas e Verônica não me viram, ou Lúcia, ao sair correndo em direção aos repórteres tentando agredí-los para que não mostrassem aquela cena hedionda em algum programa policial, como a atração do dia. Descartável. Efêmera. Não imagino como deve ser perder uma filha. Não tenho filhas. Tinha Luana e ela se foi. Como ela pode fazer isso comigo?!? Queria consolá-los, dizer o quanto ela era importante para mim, mas senti vergonha e, aproveitando que não fui visto, saí dali. Penso que foi melhor assim. Era meu último favor para ela. A pouparia desta última vergonha.

Coloquei um cigarro na boca ao chegar na esquina mas não conseguia acendê-lo, nem atravessar a rua. Comecei a chorar, discretamente. Hoje eu sabia o que me esperava. Tomaria todas e, quem sabe, ao acordar amanhã, me esqueceria de tudo. Mentira. Eu jamais me esqueceria. Coisas assim não acontecem todos os dias. Para gente como eu, só se ama uma vez.


por Raul Galhardi

2.5.08

Luar

A luz atravessa a fresta. Um feixe – um único feixe. Rajada – escorre vagarosamente do ventre ao chão, do chão à fresta. Sem feixe. Sem luz.

Peço que nos deixem.

Seu olhar é distante, infixo. “Se desfalecer, sonha?” Pergunto-me; talvez em voz alta. Seu olhar se fixa em mim.

Vento. Uma nova fresta – uma luz oscilante. Dispo-me. Aproximo-me – ele imóvel. Corto-lhe as roupas. Dispo-lhe. O abraço – afago seus cabelos. Ele treme. Afasto-me, ainda em seu colo, olho-o uma vez mais. Um outro abraço, um beijo. Seguro-o apertado, ele estremece forte, depois fraco, então não mais. Um líquido fumegante desce minhas costas.

Seu olhar é distante, fixo...

Levanto-me. A porta. Desejo água. Bastante.

A água percorre meu corpo e deixa-me, rubra. Visto-me. E a lua me ignora. Sob o galho de uma árvore me deixo ver. Estendo a mão, alcanço uma fruta, toco-a com meus lábios, sorvo seu sumo.

Sumo.


por André Drago