Dialética é a típica visão de mundo daqueles que querem simplificar a realidade e enxergar tudo pautado em dicotomias... bem x mal, justo x injusto, direita x esquerda, belo x feio, corpo x alma etc. O que ocorre é que esta visão é típica do rebanho ressentido que, precisando se sentir seguro na existência, busca explicá-la de maneira simplista.
Nós criamos esta noção de ''Bem'' e ''Mal'', ''Justo'' e “Injusto'' devido a uma revolta contra a realidade. Uma revolta metafísica. Não aceitamos a realidade da maneira como ela é, com dores e prazeres. Queremos apenas o lado bom da existência! E criamos ilusões devido a isso. Explicações racionais ou religiosas (o que dá na mesma, pois ambas baseiam-se na busca da “verdade”, de um sentido no mundo) para o sofrimento na existência. Precisamos atribuir culpa a algo ou alguém, por que ''O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido'' (Nietzsche)! A busca pelo sentido surge da dor de existir.
Preferiremos colocar a culpa em nós mesmos (pecado) ou naquilo que está fora de nós (sociedade, família, amantes, trabalho, etc...) do que simplesmente entendermos que não existe motivo algum para estarmos sofrendo. A vida é assim: dores e prazeres. Criamos, devido ao nosso desejo de segurança, a religião, a ciência, as utopias... enfim, tudo aquilo que possa nos proporcionar um lugar no mundo, algo que dê sentido a nossa dor e que torne este mundo explicável e passível de ser controlado. “O homem preferirá ainda querer o nada a nada querer.” (Nietzsche)
A Vontade é o que move o mundo. Essa vontade se projeta constantemente para fora, como uma Vontade de Poder, de querer-dominar, de vencer resistências, uma sede de triunfos! Obter o máximo de prazeres e o mínimo de dores! Mas os impulsos que não se manifestam em ato, que não se transformam em ações, seja por fraqueza ou impossibilidade, se manifestam por outros meios... eis aí o surgimento da rebelião escrava na moral.
“A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento, a inveja, se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação”. (Nietzsche) O homem, esta fonte de impulsos, ao viver em sociedade, precisa limitar-se, privar-se da realização de todos os seus anseios. Para isto, busca limitar a ação dos outros, criando assim uma “igualdade na infelicidade”. Eis a origem da dita Justiça! O sentimento de igualdade surge dos reprimidos que desejam rebaixar ao seu nível os espíritos livres, aqueles fortes que transpõem as barreiras à suas vontades!
Sendo assim, é vivendo em sociedade que o homem se domestica, se torna “manso”. A falsa igualdade criada entre os homens pela fraqueza acaba por nivelar a todos, inclusive os fortes, os espíritos livres.
É devido a tudo isso, a essa tentativa de nos sentirmos seguros no mundo, de entendermos a existência e conseqüentemente controlá-la para aplacar nossa insatisfação perante a vida, que somos levados a querer adaptar o real ao racional (ideal), o ser ao dever-ser. Negamos a vida por que não querermos encará-la. Não queremos ser livres, preferimos agir de “má-fé”, como diz Sartre, ou seja, não queremos assumir a responsabilidade da vida, de nossos atos, em nossas mãos. É um fardo pesado demais para os fracos!
Por isso surge a idéia de liberdade coletiva, que nada mais é do que uma manifestação de fraqueza. Como o indivíduo não consegue assumir sua liberdade perante a vida, ela a joga para o futuro, quando todos forem livres. A liberdade coletiva, como a igualdade, nasce do sentimento de derrota. A própria palavra “liberdade” é contraditória com “coletiva”, visto que, se somos todos diferentes, como podemos erigir um modelo único de liberdade para todos? Quem determinará isso? Os intelectuais? Os revolucionários? A massa? Deus? O Estado? Por isso liberdade coletiva é opressão, é homogenização, é destruição das diferenças naturais entre os homens em nome de uma igualdade inexistente e desejada pelos fracos incapazes de assumirem seu lugar como indivíduos autônomos no mundo.
Se nada faz sentido, para que continuarmos existindo? Por que não sentamos no chão como as crianças inseguras que somos e choramos por pena de nós mesmos? Pra que prosseguir se não existe recompensa no final, seja ele o reino dos céus cristão ou o Éden comunista na terra? Esta é a resposta?
Muito pelo contrário! É a partir da perda da esperança, da crença no futuro ideal que encontramos nossa liberdade! Paramos de esperar e passamos a viver!
Albert Camus, existencialista, inicialmente amigo e depois rival de Sartre, afirmava que é justamente quando nos deparamos com o sentimento do Absurdo, ou seja, a falta de sentido da existência, que nos tornamos livres! Livres para criarmos nosso próprio sentido e sermos nosso próprio Deus! A única liberdade existente é a individual, que se manifesta na criação dos nossos próprios valores.
Daí em diante, surgem duas opções: ou se assume a própria liberdade perante a vida, com todas as conseqüências que isso trará, pulando no abismo da incerteza, ou se retorna ao estágio de ilusões, quando o indivíduo não se reconhece como livre, não quer encarar a realidade e continua a viver alheio a si mesmo, atribuindo sentido a existência. Por isso, ser livre é a sensação de felicidade advinda da coerência entre suas ações e suas idéias. Assim, a liberdade é individual, subjetiva e não depende de condições materiais, apenas do próprio ser. Para sermos livres é preciso VIVERMOS A LIBERDADE, não esperar por ela!
“Estamos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca pisarmos, nem que seja por um momento sequer, num pedaço de terra governado apenas pela liberdade? Estamos reduzidos a sentir nostalgia pelo passado, ou pelo futuro? Devemos esperar até que o mundo inteiro esteja livre do controle político para que pelo menos um de nós possa afirmar que sabe o que é ser livre? Tanto a lógica quanto a emoção condenam tal suposição. A razão diz que o indivíduo não pode lutar por aquilo que não conhece. E o coração revolta-se diante de um universo tão cruel a ponto de cometer tais injustiças justamente com a nossa, dentre todas as gerações da humanidade.
Dizer ‘só serei livre quando todos os seres humanos forem livres’ é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, abdicar da nossa própria humanidade, definirmo-nos como fracassados.” (Hakim Bey)
Por isso atuar politicamente em nome de uma pretensa “liberdade coletiva”, ou em nome da “igualdade”, nada mais é do que uma reação de indivíduos fracos incapazes de aceitarem a realidade como ela é e de se impor a tudo aquilo que aparece como obstáculo à sua vontade. Freud explica. O desejo de ajudar ao próximo, o altruísmo, é a maior manifestação do narcisismo. Não existe auto-afirmação maior! O maior egoísmo consiste em querer moldar o mundo de acordo com seus valores e ainda ser reconhecido por isso! O generoso deseja o reconhecimento pelos seus atos e age como se fosse o detentor da verdade, o “libertador do povo”, quando na verdade "os que mais amaram ao homem lhe fizeram sempre o máximo dano. Exigiram dele o impossível, como todos os amantes." (Nietzsche).
Tudo se resume a UMA GRANDE MANIFESTAÇÃO DE INFANTILIDADE. Essas pessoas, todas crianças carentes, se refugiam no seu mundo ideal de justiça, no seu desejo pelo futuro, por não conseguirem enfrentar o presente e não se sentirem seguros, buscando de novo o seio materno, época na qual não precisavam realizar escolhas, arcar com a conseqüência delas e ainda eram amados incondicionalmente.
Para finalizar, por que esta obsessão, por parte daqueles que querem transformar a realidade, com o Estado? Por acaso acham que o poder está concentrado lá? Sim, eles acham! Mas de onde vem esta visão? Tudo veio de Rousseau, o pai da esquerda moderna, e como todo esquerdista um idealista, o qual acreditava ser o homem naturalmente “bom” enquanto a sociedade o corrompia.
(É incrível como temos a tendência de acreditarmos que nas épocas primitivas era tudo lindo e maravilhoso!).
Que miopia... a natureza é amoral! Não existe ''Bem'' e ''Mal'' presente nela! Nenhum ato é a priori bom ou ruim, já que somos nós os criadores de todos os valores. Criamos valores, ou seja, conteúdo para a realidade, ao analisarmos ela de acordo com um método, que se utiliza de uma linguagem. Portanto todos os conteúdos de valor são precedidos por formas de pensar que levaram até eles, formas estas extremamente diversificadas assim como os indivíduos. "Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo 'injusto', na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter." (Nietzsche).
É devido a esta visão de que a sociedade é ruim e o indivíduo é naturalmente bom que surge a visão de que, para mudar o indivíduo, basta mudar a sociedade, ou seja, tomar o poder do Estado. No entanto, afirma Nietzsche, "Toda filosofia que acredita removido ou até mesmo solucionado, através de um acontecimento político, o problema da existência, é uma filosofia de brinquedo e uma pseudo-filosofia".
Foucault pode nos ajudar. Na verdade, o poder está diluído na sociedade. Não existe superestrutura e infra-estrutura. O poder não se detêm, ele se exerce. Ele é ato, não potência. Todo poder vem acompanhado igualmente de um discurso de verdade que o legitima e ao mesmo tempo o reproduz, e vice-versa. Verdade e poder estão intrinsecamente ligados, o que nos leva a afirmar que não existe verdade, pois o que existe são discursos de verdade criados pela vontade de poder.
Logo, se o poder está presente em todas as esferas sociais (família, escola, hospício, prisão, trabalho, Estado, etc.) a atuação cotidiana dentro das limitadas áreas de cada esfera pode ser tão eficiente ou mais para transformar a realidade vigente, ou melhor, o sistema de verdades/poder existente, quanto uma atuação através de movimentos de massa que almejam a tomada do Estado. Na verdade é até mesmo perigoso essa tomada de poder do Estado sem uma anterior transformação dos discursos de verdade/poder, pois corre-se o risco de continuar a se reproduzir práticas antigas mesmo em uma nova sociedade, sendo este o maior erro e principal causa do fracasso de todas as revoluções!
Percebe-se que a lógica infra-estrutura e superestrutura foi totalmente aniquilada, assim como a noção de ideologia, pois para existir “ideologia”, pressupõe-se que existe também o seu oposto, ou seja, a verdade, e já que a verdade é uma manifestação de um discurso pautado numa vontade de poder, não pode-se falar em verdade, mas em discursos de verdade/poder. Logo, tudo seria “ideologia” e a verdade científica almejada pelo marxismo, positivismo e todos os demais discursos cientificistas não existiria.
Por fim, lutar por um pretenso ideal de justiça, liberdade (coletiva) e igualdade, além de ser uma manifestação de fraqueza, idealismo, uma fuga da realidade, um desejo de jogar para o futuro aquilo que não se concretizou no passado e no presente e que simplesmente nunca existiu na história da humanidade, também apresenta outra quimera que é a da impossibilidade de se discernir o quanto o seu discurso também não é fruto deste mesmo sistema de verdades/poder existentes, já que é impossível se pensar fora do momento em que se vive.
Conclui-se então que a situação é muito mais complicada do que se mostra e que os resultados pretendidos ao se atuar fora de si mesmo nunca serão os pretendidos, provavelmente até opostos. Mas todos os seres possuem a liberdade de se iludirem...
por Raul Galhardi