7.10.10

"Be good, get good or give up"




“A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre”. Oscar Wilde


No episódio de House “A Decepção” Foreman afirma ao final para Cuddy que “House não é um herói. Quem desrespeita uma regra ruim é um herói. House não desrespeita as regras, ele as ignora. Ele não é Rosa Parks, ele é um anarquista. Ele só defende o direito de todo mundo pegar o que quiser quando quiser. Se ensinar isso aos médicos, a taxa de mortalidade vai aumentar muito.”.

Verdade? Veremos.

O que ele disse lembra uma frase de Che Guevera: “A velocidade do bando deve ser a velocidade do mais lento”. O que isso tem a ver com o que Foreman defendeu? Nivelar por baixo, em poucas palavras.

Em nossa sociedade devemos nos pautar pelo padrão médio de indivíduo. Regras existem para domesticar a todos, mas principalmente os incompetentes, os tolos, pois é preciso proteger a coletividade e eles mesmos de suas inabilidades e deficiências. Os mais capazes, como House, aqueles que se elevam acima da massa medíocre não precisam das regras do senso comum, pois existindo elas ou não, eles fazem suas próprias regras. Todavia, em termos de política, administração da sociedade, como saber quem são essas pessoas, aqueles indivíduos que se destacam da multidão e por isso podem ou devem ser tratados diferenciadamente? Não há como saber. Por isso a isonomia, o princípio de que somos todos iguais perante a lei, nivela a todos tendo como referência os impotentes, os fracos, os ignorantes. Os retardatários.

Isso que dizer que Foreman está certo? É fato que Foreman acerta quando diz que se todos os médicos começassem a desrespeitar as regras muitos pacientes morreriam, afinal a maioria dos médicos não é como House. Por outro lado House também está certo em suas atitudes, pois se alguém realmente é um indivíduo diferenciado, mais capaz, mais competente do que o resto, porque seguir essas regras perniciosas? Porque fazer aquilo que considera pior, limitado, se sabe o que é o melhor, o que pode ser feito além do limite das regras? Os conceitos de certo e errado não se aplicam a ele como se aplicam a maioria, ao indivíduo médio. Este indivíduo precisa destas regras, para se proteger e para proteger os outros. House não.

Ele ignora as regras como Rosa Parks ignorou a lei americana que impedia negros de se sentarem em assentos para brancos nos ônibus. Nesse sentido, fez aquilo que achou certo. Criou sua própria regra e ignorou os costumes e leis vigentes da sociedade em que vivia.

Qual a diferença então entre os dois? De acordo com Foreman, a lei que Rosa Parks desrespeitou era “ruim”, logo ela merecia ser desrespeitada. Eis outro problema. Como definir quais leis são ruins, portanto devem ser desobedecidas, e quais são boas? Teoricamente uma lei existe para ser cumprida, não para ser violada. Todavia é verdade que exemplos não faltam de leis na história da humanidade que em suas épocas eram consideradas “boas”, ou pelo menos o senso comum assim as tratava, e foram violadas de forma a hoje serem avaliadas como retrógradas e nocivas. A escravidão é um exemplo. A ausência de direito ao voto para as mulheres é outro, assim como a inexistência do direito de greve. Os exemplos são inúmeros.

Portanto a que conclusão chegamos? Nenhuma lei ou costume é ruim per si. O bom e o mau são valores socialmente construídos, variáveis de época para época. Logo falar em leis “boas” e “ruins” não faz sentido algum. House é igual a Rosa Parks, pois ambos fizeram aquilo que consideraram correto indo contra as regras de seu meio.

Houve tempos em que as diferenças eram incentivadas. Leis, costumes, privilégios e deveres exclusivos para determinadas classes ou castas da sociedade. Nosso atual espírito democrático não permite sequer cogitarmos isso. Nesse sentido, ao rejeitar a moral vigente e seguir sua vontade, House aproxima-se da idéia de “Homem extraordinário” de Raskólnikov, personagem de Dostoiévski, e do “Super Homem” nietzschiano.

Devemos então nos assumir como indivíduos plenamente autônomos e sermos nossos únicos senhores ou necessitamos de regras impostas por outros? Quem está certo, House ou Foreman? Minha resposta é: os dois. Precisamos de leis e regras? Sim. Todos devem cumpri-las? Não. Como saber quem deve e quem não deve segui-las, ou melhor, quem PODE e quem NÃO PODE violá-las? Não há teoria para isso, caso contrário estaria apenas criando outra regra suscetível de violação. São os atos e seus resultados que determinarão isso. A liberdade é filha do poder. O sucesso da ação pretendida é o único diferenciador entre aqueles que de fato podem desprezar as convenções sociais daqueles que estão fadados a berrarem como ovelhas.

A uns poucos, tudo aquilo que forem capazes de alcançar. Ao resto, a dura e igualitária espada da lei.

6.2.10

O Ocaso do Pai


Para acompanhar: Radiohead - How I Made My Millions




O pai precisa morrer.


Vivemos há mais de 2000 anos sob o signo do macho. Nascemos, crescemos e morremos sob este carma. Esta sina. A autoridade chega ao seu fim.

Caos... não. Ordem? Também não. Um e outro. A suavidade, apenas. Sem arestas. A fluidez contra o impacto. O escorregar. Uma existência densa, porém esguia. Líquida. O sólido já não nos serve mais.

Não. Não é uma revolução. Longe disso. Revoluções fazem parte deste mundo caduco que deixamos para trás. É uma mutação. Uma nova espécie tem início das cinzas de outra. Um homem diferente, novo, mas não melhor ou pior.

O confronto que não aniquila, mas absorve. A alteridade como regra. Regra?

A repressão como forma de autoconhecimento, necessária apenas para o mínimo funcionamento das interações humanas. Não ao Superego, ao Id e ao Ego. Não há três. Não há um. Há vários sujeitos em um só. Somos todos muitos e não nos conhecemos. Não queremos e não podemos.

Por isso o pai precisa morrer. Não é uma questão de vontade, mas uma realidade. Vontade esta sempre vista sob a ótica da dualidade excludente: Repressão x Liberação, Id x Supergo, Prazer x Dor. Sempre julgada e não aceita. Porque não ser vários que se complementam ao mesmo tempo? E porque não aceitar tudo? O todo? “AMOR FATI”. Todos juntos não constituem um, porque não sabemos quantos somos. Somos múltiplos e diferentes ao mesmo tempo. Não há aquele que é você, mas aqueles que são você, vistos por todo o restante do mundo. Eu, você, os outros... todos vemos a mesma coisa de formas distintas. Porque não acabar com a idéia de “coisa”? Ou do “mesmo”?

Para isso o pai precisa morrer. Morrer lentamente para que as mudanças sejam deglutidas sem traumas. Sem terremotos e sem furacões da alma tão buscados por épocas passadas e ainda próximas. Estigma do macho. A violência. O abrupto. O trauma. O mundo envelhece lentamente e foi o macho que nos trouxe ao que vemos hoje: a rapidez. O avanço que se diz progresso, mas não sabe para onde vai. Para onde quer ir. Uma evolução para uns e tragédia para muitos.

Não há modelo ou ideal, pois essa é a idéologia do pai. Ele quer a perfeição. A exige. A deseja como um faminto, um ser incompleto que é e não se aceita. E oprime a consciência quando ele não a obtêm. Somos todos insatisfeitos. É assim que devemos ser? O modelo não existe, mas é uma eterna construção. Não há estrada e esse é o problema para este pai tão acostumado a querer planejar tudo. Não está acostumado a se perder...

Nascemos e morremos nos perdendo. E isso não é ruim. Só agora nos demos conta, ou pelo menos só agora resolvemos rasgar o véu que nos cobria. Era óbvio. Óbvio para quem?

Não faz sentido... mas é para fazer? “A coerência é a virtude dos imbecis”, diz o dândi. A coerência é mais uma ideologia paterna. Faz parte da razão. A linha reta não existe na natureza. Somos todos curvas. Não percebemos isso antes?

Mas para que o pai morra é preciso um enterro. Sem choro, porque não é o fim, mas o recomeço. Só mais um recomeço. Sem esquecimento, pois não há ruptura. Há absorção e transformação.

Para isso é necessário o ritual apropriado. A consciência tranqüila. O saber alegre, a gaia ciência. A leveza do espírito. A abertura para o outro que durante tempos foi definido partindo daquilo que achávamos que éramos. O outro negligenciado e julgado impiedosamente pelo nosso eu. Julgar é preciso. Incorporar também...

As velhas certezas... novas serão necessárias? “JOIE VIVRE”.

Queremos um pai feliz, um pai-fêmea, pai-mãe. Andrógino. Incompleto, consciente e fluido. Definir é limitar.

O pai morreu. Alegria. Brindemos à sua morte! Este falo que há milênios se impõe sobre a humanidade...


Longa vida ao pai.





Raul Galhardi

6.6.09

God is on TV



Rede de Intrigas é um manifesto. O diretor Sidney Lumet mostra, de forma sarcástica e cínica, as principais competências da televisão: entreter descomprometidamente, promover o consumismo e domesticar as massas. A televisão é um ícone da pós-modernidade.

As sociedades pós-modernas vivem saturadas pela informação. A publicidade estimula o consumismo personalizado e a informação encontra-se dispersa em todos os espectros da vida social. A regra é ser atualizado. No entanto, esta ânsia por informações deixa o indivíduo pós-moderno ansioso, inseguro. Ele é um indivíduo atomizado, desprovido de uma subjetividade densa. Raso como um pires.


Desta forma, o sujeito se separa do todo e passa a ser um terminal de informações isolado, pois a massa pós-moderna não é homogênea, não se caracteriza mais por discursos comuns, ideológicos, que serviam para criar grandes agrupamentos humanos sob uma mesma bandeira. O sujeito é estimulado a ser único, autêntico, mas paradoxalmente ele não é tão diferente da massa quanto julga ser. A ilusão da individualidade pelo consumo é vendida como se pudéssemos nos apropriar de diferentes egos da mesma forma como trocamos de roupa ou compramos um carro novo. Se os grandes discursos estão em decadência, resta apenas uma guerra a ser travada. Uma guerra espiritual pela essência do ser humano. A grande questão que se coloca hoje é como permanecermos humanos diante da opressão de nossas próprias vidas, já que os antigos “fins” e “verdades” já não nos servem mais.



O filme Rede de Intrigas demonstra magistralmente a situação em que os indivíduos desertificados da atualidade encontram-se em relação aos meios de comunicação. Valorizamos demais as imagens e não temos tempo para informações mais complexas, densas, ou simplesmente não as desejamos mais. Estamos seduzidos pelos discursos da mídia televisiva. Como é dito em uma cena do filme, não há mais um sistema, mas vários sistemas interconectados que já perderam o controle de si mesmos. Rubem Alves, em seu texto intitulado “Tecnologia e Humanização”, afirma que a grande mudança ocorrida no século dezenove foi a subordinação da natureza ao projeto humano, através da técnica. A técnica passou a ser um instrumento ativo de transformação do real visando o ideal. A tecnologia seria a ponte que ligaria o “ser” ao “dever-ser”.

No entanto, o que podemos atestar atualmente é que esta mesma técnica perdeu seu rumo original e se tornou ela mesma um fim em si própria. A retroalimentação dos meios acabou com os fins. A razão tornou-se meramente instrumental, perdendo seu conteúdo idealista. A cultura ocidental tem sido até hoje uma corrida em busca do simulacro perfeito da realidade. Apagar a diferença entre real e imaginário, ser e aparência, “ser” e “dever-ser”. No entanto, está claro que as exigências do imaginário não podem ser supridas pela realidade. Foi em decorrência disto que Boaventura de Souza Santos, em seu texto intitulado “O Social e o Político na Transição Pós-moderna”, afirmou que a humanidade, do início do século XX em diante, preocupou-se apenas em tornar parcialmente realidade algumas aspirações da razão, deixando de lado o irrealizável do projeto iluminista e dando início assim ao que nós chamamos hoje de pós-modernidade, o fim das promessas modernas.




Esta noção de que somos impelidos ao ideal em detrimento do real está presente na película em seus momentos finais. A televisão é um propagador de ideais, de sonhos. O “messias louco” em Rede de Intrigas, ao mudar o teor de sua mensagem de indignação para uma visão de anulamento do sujeito, pautado na constatação da pequenez do indivíduo diante destes sistemas que se entrecruzam, começa a perder sua audiência. As pessoas não queriam mais ouví-lo porque dentro delas existia uma chama de revolta contra o mundo que nem mesmo os meios de comunicação de massa poderiam acabar. Canalizá-la, sim, como faziam, mas destruí-la não. Surge uma esperança no futuro da humanidade.

Não compartilho desta esperança, no entanto. Já dizia Nietzsche que somos um eterno “vir-a-ser”, um projeto inacabado. Somos dilacerados por pulsões constantes que escapam do nosso controle e que nos levam sempre a querer mais. “O homem preferirá ainda querer o nada a nada querer”, dizia o filósofo destruidor de ídolos. Sendo assim, somos impelidos a querer sempre mais da realidade, mesmo que isto não seja possível. Logo esta chama de inconformismo não nos leva necessariamente a momentos melhores. Ela serve também para enganar e fazer-nos crer que um dia todos os nossos desejos serão finalmente transformados em realidade. Doce ilusão. A técnica não conseguiu consolidar este projeto humano de simulacros, de tornar realidade os anseios da alma, e resume-se agora a prolongar estes ideais no homem, que, por sua vez, cada vez mais sente no âmago de seu ser uma angústia, um sentimento de que estes ideais não passam apenas de sonhos. Ainda assim, ele prefere continuar iludindo-se. E assim o sistema se mantém, utilizando-se justamente desta paixão inconformada.

Por outro lado, existem alguns pensadores otimistas, como Gilles Lipovetsky. Para este teórico da hipermodernidade, “precisamos ser muito prudentes com essa concepção de que o consumidor e o cidadão seriam indivíduos totalmente remodelados e fabricados pela mídia”.

“Acho que a mídia tem poder demais nos comportamentos, mas também sobre a informação. Para a massa, o essencial é a televisão. De um lado isso pode orientar comportamentos, mas, de outro, isso trás uma série de informações. Essas informações criam indivíduos mais reflexivos a longo prazo, mais capazes de comparar aquilo que são e aquilo que os outros são. Acho que devemos nos livrar de um modelo behaviorista da televisão e da mídia, como se bastasse multiplicar as mensagens para que os indivíduos as aceitassem.”, afirma o filósofo. Assim conclui: “Os indivíduos podem tomar distância, e creio que a mídia pode orientar os comportamentos de um lado e favorecer a individualização dos seres de outro.”.

Qual visão está certa? Não creio que “certo” e “errado” sejam ainda pertinentes. A única certeza que podemos ter é que esta é uma pergunta que jamais será respondida de uma única forma.



Raul Galhardi

15.1.09

Última estação

Estou sentada aqui há 3 horas. Última estação. Já vi algumas centenas de pessoas entrarem e saírem dos vagões. Algumas cheias de malas, outras sem nada.

“O que leva alguém a viajar sem nada?”, me pergunto. Acho que o desejo de não se prender, de não querer tornar ao lugar de onde veio. Malas representam coisas, e coisas possuem história. Alguém que deseje recriar ou esquecer o passado não pode se apegar a coisas. É, talvez seja isto.

Pelo menos estas pessoas, com ou sem coisas, com ou sem história, sabem para onde vão. Eu sou do primeiro tipo, embora esteja com apenas uma mala. Não há mais por que ficar. Também não tenho para onde ir. É por isso que estou há 3 horas sentada aqui. Se não quero o meu passado, mas não tenho um futuro, o que fazer?

Foi nesta indecisão que resolvi arrumar minhas poucas coisas que interessavam e rumar para cá. “A estação de trem deve ser um bom lugar para saber aonde ir”, pensei. Afinal, com tantos rumos, basta que eu escolha um e siga. Mas não está sendo tão fácil assim. Se eu realmente quisesse deixar tudo para trás, não traria esta mala. Então a culpa é dela? Penso em me desfazer dela, mas quando me levanto é como se eu estivesse deixando um animal, que não me segue, mas chora pedindo que não o deixe. Não, acho que o problema não é a mala. Sento. Sou eu.

Se sou eu, como posso resolver isto? Não há mais nada aqui para mim, mas se não há nada aqui, e até agora isto foi tudo, onde acharei algo fora de minha própria história, minha própria vida? Penso em questionar alguém que desce dos vagões, mas me contenho. Constranjo-me. Afinal, não sou eu quem deveria saber a resposta? Mas como se cria algo a partir do nada? Tudo vem de algum lugar e vai para outro. Mordo os lábios e meus olhos se enchem de lágrimas. Tenho vontade de chorar. Lágrimas contidas, para quem ninguém perceba. Sinto-me só, muito só. Como é possível estar sozinha no meio de tantas pessoas? Aperto a bolsa com minhas mãos e baixo a cabeça.



Alguém senta ao meu lado e tosse. Levo um susto e no mesmo instante fico reta, olhando para frente. Sinto um calafrio na espinha, meus pêlos eriçam e prendo a respiração. Encolho os lábios. Sem virar a cabeça, olho para o lado. Um rapaz sentou ao meu lado. Desleixado, com as pernas abertas encostando nas minhas e olhando para cima, com a cabeça apoiada na parede. Um braço no apoio do banco e o outro esticado em cima do encosto, quase me tocando. Viro um pouco e vejo que veste um terno, sem gravata e a camisa um pouco aberta.

- Para onde vai? Pergunta ele, olhando para mim.

Levo um susto e viro para frente novamente.

- Eu?!? Eu... ainda não sei.

- Huuum... e quando pretende se decidir?

Quê, como assim?!?

- E por que você quer saber?!? Eu não o conheço.

- Mas poderia. Qual o seu nome?

- Por que eu iria querer conhecer você? Já tenho meus problemas.

- Eu estou te observando desde que você sentou neste banco. Você não me percebeu, mas eu te notei. A julgar pela sua única mala, ou não tem muita coisa para levar consigo ou você está querendo largar tudo para trás. Eu também. Não tenho nada que valha a pena levar daqui. Eu não sei para onde vou, você também não sabe. Pensei que poderíamos construir algo juntos.

Quando a resposta já saia automaticamente, paro e penso. No entanto, quando vou me pronunciar, ele toca minha mão, levanta a cabeça e fala, olhando nos meus olhos:

- Antes que diga algo, eu tenho algo a dizer. Talvez ajude. O caminho não existe, ele se faz ao caminhar e caminhar é melhor do que ficar aqui parado.

Os caminhos existentes são os caminhos dos outros. Esses caminhos não existem para nós, pois cada um é um ser único que realizou escolhas próprias. Olhar para a vida dos outros esperando ver um reflexo de nós mesmos é um erro, um sinal de hesitação, indecisão, de negação. Um sinal de fraqueza.

Exemplos só servem para quem os viveu. Espelhar-se nos outros é negar a si próprio. Melhor levantar e rumar em direção ao desconhecido, deixando para trás as migalhas da sua própria historia, dos seus próprios atos.

É por isto que você está aqui sentada, vendo toda essa gente entrar e sair destes trens. Acha que a solução irá surgir repentinamente, vinda de algo ou de alguém. Vindo de fora de si mesma. Não, não existem duas vidas iguais e se não existem, porque esperar por algum caminho já trilhado? Todos os problemas são gerados e solucionados pelo próprio indivíduo. Cada situação se impõe diante de nós e apenas nós podemos lidar com elas, torná-las ou não um problema. E se elas tornam-se um problema, só podemos nos apoiar em nós mesmos para o solucionarmos.

Após dizer tudo isso, ele se cala e vira o rosto para o outro lado, cruzando os braços. Eu baixo a cabeça e, após um instante, levanto-me num impulso e pergunto:

- Vamos? Digo sorrindo de maneira tímida, mas convidativa, esticando a mão para ele.

Ele se vira surpreso e me pergunta:

- Para onde?!?

- Que tal um café primeiro?

Abro meu sorriso e sinto o rubor em minha face. Ele sorri. Em seguida, segura minha mão e saímos dali.



Raul Galhardi

27.12.08

Em algum lugar, em alguma noite...

- Satã, é você?

- Sim, sou eu.

- Puta merda, você me assustou! Pensei que fosse um ladrão. Quase abri sua cabeça com uma paulada.

- Seria engraçado isso...

Largo o pau em cima da mesa e sento. 1 garrafa de gin. Vários cigarros. Algumas carreiras de pó. 1 mesa. Isto é tudo que interessa.

- Fazia tempo que eu não te via.

- Existem certas regras a serem cumpridas. Ele não pode vir até aqui, eu também não. A diferença é que eu faço o que quero. Ele não. É um escravo de suas próprias regras.

Mas, como você deve saber, eu não sou de me submeter a regras, eu as crio. Melhor governar no inferno...

-... do que servir nos céus. Sim, já cansei de ouvir você falar isso. Você é o cara.

- (Riso) Eu não me gabo... deixo isso para vocês.

- Está servido?

- Sim.

- Nunca imaginei que um dia dividiria meu cigarro e minha bebida com o diabo. É...

- Imagino que você já tenha estado com pessoas piores do que eu.

- É verdade! Ah... já andei com verdadeiros porcos! Você até que é agradável comparado com eles... aliás, porque você vem me visitar? Você deve gostar de mim para vir aqui. Lá embaixo não é bom?

- Você sabe que eu não posso falar como é lá.

- Mas você não descumpre as regras?

- Só posso lhe garantir uma coisa: não é. Eu venho aqui por que você é uma alma perdida. Você segue o rumo até mim. Porque você não pára de ser assim, sabendo que está caminhando para uma eternidade de sofrimento?

- Porque as pessoas não podem deixar de ser o que elas são. Todos querem me dizer o que eu devo fazer, como me comportar, como ser uma boa pessoa, um bom empregado, mas eu prefiro simplesmente ser eu mesmo. Se isso me levar ao inferno, foi minha escolha.

- Você não sabe do que está falando...

- E você sabe? Já viveu como um humano?

- Lá embaixo é bem pior do que aqui.

- O que é isso? Está se importando comigo? Hehe... eu sabia que você gostava de mim!

- Não que eu esteja sentindo algo, mas quero deixar claro isto. Eu posso sentir. Não é negado a mim sentir e por isso abraço todos meus sentimentos e instintos com toda a intensidade! Para Deus, acostumado com sentimentos insípidos, com o ''amor universal'', isso é o pecado!

Hipócrita! Ama-se todos para não se amar ninguém! A importância do amor reside justamente no fato de que aqueles que são amados são especiais para quem ama, são diferentes do resto. Mas se você ama todo mundo, todos são iguais, logo ninguém é especial! Eu escolho aqueles de quem gosto, embora goste de vê-los queimando também...

- É, não posso dizer que sou um cristão fervoroso. Agora sou eu que estou começando a gostar de você. Então você não é muito diferente de um ser humano.

- De fato. É bom que goste, afinal, passaremos um longo tempo juntos...

Acendo outro cigarro. Ligo o som. Encho os copos. A noite está só começando.


Raul Galhardi

22.8.08

''Você é bom demais para mim.''

Você é bom demais para mim – o que significa isso??

Uma verdade ou uma mentira. Se for uma mentira, não me interessa. Tratarei aqui de quando esta frase é dita como verdade, da idéia de que realmente, em muitos casos, essa frase é o que ela significa. Ou as pessoas mentem ou são masoquistas. Por acaso elas não querem a felicidade?

Caso os indivíduos se tornassem completos, parariam de buscar, e a existência é busca! Não pode haver o final, a satisfação. Esta é a grande contradição! Isso tudo, afirma Pascal, é devido ao nosso vazio. Não possuímos significado “a priori”, mas o construímos na própria busca. Para ele, oscilamos entre a alienação, ou seja, o estado em que ocupamos nossa mente para não sermos preenchidos pela sensação do vazio, e o tédio, quando o vácuo toma conta de nós. Somos uma pulsão constante, um eterno vir-a-ser, mas ao mesmo tempo há limites para esta transformação, pois ninguém vive revolucionando-se a cada instante. Mudanças são lentas, poucas são radicais. Esta é a lei da natureza.


“Por fim amamos o próprio desejo, e não o desejado.” (Nietzsche)


(É esta contradição intrínseca ao ser humano que me leva a crer na existência de um Impulso de Morte, como diria Freud. Uma pulsão que se volta contra o próprio sujeito, na intenção de nos fazer retornar ao nada, ao Nirvana, ou seja, de acabarmos com as dores de existir através da nulificação da vontade e, em ultima instância, da própria existência.)


*

Passando agora ao tema principal introduzido pela primeira frase... eis o amor!

Palavra forte esta! Palavra forte porque idealizada, supervalorizada! Idealiza-se o amor por medo de amar, por medo de se dizer que ama. Subcategorizamos o amor em várias modalidades (amor paterno, fraterno, entre amigos, entre namorados...) simplesmente para não dizermos esta simples frase que para muitos pode fazer tremer um mundo: “Eu te amo.”

Amor é um só. Eu amo meus amigos, meus pais, minha namorada e todos aqueles que me são queridos. Mas é fácil dizer que amamos nossos pais. Não é tão fácil dizer para um amigo que o amo e mais difícil ainda é dizer para alguém que a amo como namorado. Para quanto(a)s homens/mulheres com quem ficamos dissemos “eu te amo”? Muito poucos. Na verdade esta frase assusta! Temos muito medo de falar e de ouvir esta frase, porque ela implica toda uma série de obrigações e expectativas e é só nisso que pensamos. Por isso dividimos o amor.

Faço minhas as palavras de Roberto Freire, criador da Somaterapia:

“Escrever sobre o amor é difícil, porque essa palavra nem sempre designa realmente amor, sendo mais freqüentemente usada como superlativo do afeto que se pode sentir por uma pessoa.

Aliás, isso acontece porque a maioria, da forma como se vive hoje, não consegue amar realmente e supõe ser amor o gostar intenso e doloroso que lhe foi possível sentir por alguém.

O mais grave, entretanto, é o fato de as pessoas acreditarem tratar-se verdadeiramente de amor o gostar desmesurado. (...)”.


*

Amor envolve compromisso. De que tipo? Uma traição é perdoável, mas varias não? A quantidade faz alguma diferença? 2,3,4, 57 vezes? Por quê? Não podemos amar alguém que fica com outras pessoas, mas sempre volta?

Não, porque nos consideramos donos do outro. Confundimos amor com fidelidade e não com lealdade. O sentimento de posse faz parecer que a “traição” representa uma falta de respeito, carinho e consideração pelo outro. Não me parece ser uma falta de respeito desde que haja sinceridade entre o casal. Só há este problema porque consideramos isto um problema. Se passássemos para um grau de compreensão de que o fato de ficarmos com outras pessoas não significa falta de amor, isso não seria considerado uma traição, algo a ser escondido e reprimido. Não entendemos a "traição" porque temos medo de perder a outra pessoa!

Na realidade, todos (quase todos, para os chatos de plantão...), enquanto estão tendo um relacionamento, sentem, mais cedo ou mais tarde, atração por outras pessoas. Nada mais natural. Ficar com outra pessoa, ou 40, não é o problema, desde que exista sinceridade, cumplicidade e de que haja lealdade, o retorno. Amar consiste em dividir os momentos bons e ruins, em gostar de alguém e querer que ela seja feliz (mesmo que não seja com você). Se ela voltar, ótimo, ainda há uma relação. Se não voltar, uma pena... a vida é assim mesmo, ninguém controla nada!

Agora o que ocorre é um pacto de hipocrisia! Mentimos, omitimos e fingimos não saber da verdade na ilusão de que, se proibirmos a outra pessoa de realizar seus impulsos, estaremos acabando com ele, ou então se não ficarmos sabendo do que ocorre “por fora” nada estará acontecendo para nós. Ledo engano. É muito melhor jogar aberto do que ficar jogando tudo para debaixo do tapete, pois, como já disse, mais cedo ou mais tarde isso acontecerá, e quando acontecer e for descoberto, dificilmente este relacionamento continuará.

Esta frase resume bem o pensamento moderno:

“What´s so great about the truth? Try lying for a change – it´s the currency of the world.” (Dan, personagem do filme “Closer”)

Dizer sempre a verdade é bom? Não com nossa cultura, porque não estamos acostumados à sinceridade. Na verdade, necessitamos da mentira para sermos felizes, para vivermos "em paz", porque precisamos da ilusão do controle (e isso não vale só para o amor, mas para tudo). A própria palavra ''Perder'' é uma palavra errada, é um conceito errado, porque de fato nunca tivemos o outro, nunca o possuímos! Temos a ilusão do controle, da segurança, para nos aplacar, para nos acalmarmos, mas de fato não há este controle. Não se pode controlar a vida. Como já tratei no texto “Um Grito Contra o Humanismo e o Idealismo” sobre essa necessidade de segurança humana, não irei me prolongar aqui sobre ela.

Todavia, não estou aqui a afirmar que toda “traição” não significa falta de amor. Se ela ocorrer porque a pessoa não se sente mais feliz com o seu relacionamento, então os motivos que a levaram a “pular a cerca” são diferentes daqueles até aqui elencados. Neste caso, deve-se mesmo pensar em terminar a relação, pois ela já está morta... ou caminhando para isto.

Para vivermos em sociedade, é necessário abrirmos mão do nosso egoísmo natural, e agirmos conforme a dança. POR QUÊ? Para aplacar nossa própria sede de segurança e a sede alheia! Para que, sob o mesmo véu de valores, de verdades, possamos todos conviver harmonicamente. Por isso, reafirmo as necessidades conflitantes, os impulsos conflitantes que movem o ser humano. Somos impelidos para nossa satisfação pessoal ao mesmo tempo em que somos impelidos à convivência pelo nosso desejo de segurança.

Todavia, liberdade e segurança são antagônicos! O máximo de segurança é a escravidão, porque liberdade significa risco. Porém, ambos (indivíduo e sociedade) só podem conviver com prejuízos recíprocos, pois o individuo renega a satisfação plena de seus desejos e, ao mesmo tempo, a sociedade não o satisfaz completamente, o que acarreta crises e divergências, rebeldias do individuo contra a sociedade. Não há harmonia alguma. Se existe alguma verdade, é essa. Gostamos de nos enganar. A sociedade sofre ataques a todo tempo dos seus integrantes e a todo momento sofremos imposições dela sobre nós. Não há saída. Há mediação. Talvez se temêssemos menos o incerto, o livre - devir, o caos, o acaso, o contingente, seriamos mais felizes, pois mais realistas.

Será? É nisso que eu acredito. Mas encontrar este ponto médio é o grande problema, e só cabe a cada um defini-lo...

*

Ao tratar do amor, Erich Fromm, psicanalista, diz:

“É o amor uma arte? Se o é, exige conhecimento e esforço. Ou será o amor uma sensação agradável, que se experimenta por acaso, algo em que se ‘cai’ quando se tem sorte?”


Sua tese é a de que o amor não acontece por acaso, mas é preciso estar preparado para ele, tanto para amar quanto para ser amado. No entanto,

“A maioria das pessoas vê o problema do amor, antes de tudo, como o de ser amado, em lugar do de amar, da capacidade de alguém para amar. Assim, para essas pessoas o problema é como serem amadas, como serem amáveis.”

No nosso desejo egoísta, queremos trazer o outro para nossa esfera de influência afetiva, sem sequer mesmos estarmos preparados para amar este outro. E quando o trazemos, não queremos mais perdê-lo.

Para Fromm, basicamente, existem dois tipos de relações. A “simbiótica” é aquela em que ambos os pólos da relação necessitam um do outro, com um pólo ativo (sádico) e um polo passivo (masoquista), podendo haver inversão de papeis, desde que esta polaridade seja mantida.


Já a relação “amadurecida” consiste na “união que se dá sob a condição de se preservar a integridade própria, a própria individualidade.” Desta forma, o indivíduo não busca sua completude, sua inteireza, fora de si! Ele é completo consigo mesmo, sem depender de nada nem ninguém.

Sobre isso, Roberto Freire sintetiza:

“DECLARAÇÃO DO AMANTE ANARQUISTA:
Porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.”

*
Por último, outro ponto a ser analisado é a importância desmedida que damos à duração. Não basta que seja intenso, queremos que tudo dure ad eterno, o máximo de tempo possível! Não podemos usufruir, aproveitar, gozar da experiência enquanto ela dura, e após dela retirarmos todo um aprendizado, toda uma gama de experiências boas e ruins? Quem disse que tudo deve durar? Na verdade se a vida nos ensina algo é que nada dura. Mais uma vez, o desejo de segurança, o medo da inconstância, o conformismo de estar numa situação, quando não precisaremos constantemente lutar pela nossa felicidade, como se felicidade fosse algo estacionado, é o que nos leva a raciocinarmos desta forma.


Não há felicidade se a encaramos como algo estático. Ela é dinâmica, um agir constante motivado por um inconformismo perante a vida. Não quero dizer que nunca devemos nos contentar com nada, no entanto, sempre que repousarmos, é necessário uma reflexão constante sobre até quando continuaremos estacionados nesta situação, até quando estamos nela por mera comodidade ou porque ela realmente é prazerosa.

Sendo assim, termino:

"O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis''. (Fernando Pessoa)
Raul Galhardi

13.8.08

Manhã. Céu claro. 35ºC.

Manhã. Céu claro. 35ºC.


- Zé! Vê uma porção de torresmo e uma cerveja! Ah, dois copos!


- Calma aí! Deixa só eu ver essa falta...


Puta merda de jogo. Puta merda de dia ensolarado. Cueca molhada, assadura... e essa praia com essa maldita areia branca refletindo luz na minha cara.

- Só tem Bavária e Nova Schin!

Puta merda de cerveja ruim...

- Bavária e Nova Schin?? Cê tá doido, porra?!? Eu não bebo mijo não! Quer me dar dor de cabeça? Fecha logo esta porra de bar que assim não dá!

Falar mal de todo mundo - vencedor e perdedor... é tudo igual! Prefiro até ser um perdedor! Mais próximo do chão não machuca tanto a queda.

- Que vaca, hein?? Tu viu o short que aquela safada tá usando?? Caralho... hehehe, esse mundo tá perdido mesmo!

- rapaz, a moça tá trabalhando, deixa ela. Já não basta ter que atender este povo todo??

- Pode até ser que ela não trabalhe aqui porque queira, mas este short ela tá usando porque quer sim! Safada! Vem aqui pro papai, vem!

- é por isso que você não arruma mulher! Tu só sabe tratar elas mal!

- Tu fala isso porque tu é um barriga branca! Tua mulher manda em ti.

- e tu, que nem tem?

- Pra quê? Se tem... presentes, horários, cobranças, contas, cama de casal, não posso peidar debaixo do cobertor e cheirar e deixar as roupas espalhadas... tenho que foder sempre a mesma mulher, não posso ficar falando merda ate tarde com os amigos... mas também se não tem é punheta, ninguém pra foder, bar todo dia com derrotados como você, ninguém pra te levar pro hospital quando você tiver um infarto ou um coma alcoólico, nada pra fazer no domingo, ficar na TV e ninguém pra conversar. Aliás, se tem alguém, é sempre a mesma coisa... TV, almoço de domingo e o caralho a quatro... se não tem, é pior.

- eu não sou derrotado, só gosto daqui.

- Puta merda, já falou como um derrotado! Quem gosta de uma merda dessas, esse pardiero? Além deste bando de merdas derrotados, só comunista xiita e chato gosta de andar em canto assim decadente! Se bem que é tudo igual mesmo, comunista e derrotado de merda... hehe

- cara, olha só aquele viadinho ali! O cara tá se achando! Haha vê se pode...

- Já vi... rapaz... sobre isso eu penso o seguinte. Deve ser muito bom dar o cu, porque eu nunca conheci um ex-gay. Me aponte um ex-gay! Você conhece? Por isso eu não tenho nada contra viados... se deus quisesse que fossemos todos machões, não teria feito o "ponto G" na próstata, porra.

E o cu? Tu já viu o formato dessa porra?!? É igual ao formato do pau. Se buceta fosse pra pau, o formato dela seria o de uma rola cilíndrica e não o de um peixe. Agora, como deus gosta de ser sacaninha, não colocou lubrificante no cu... hehe, safado!

- que papo de viado é esse, rapaz?

- Viado nada, só realista! É claro que eu gosto de uma buceta cheirando a bacalhoada! Me Gustán las Muchachas Putanas!

- eu só sei que não gostaria de ter um filho viado...

- E eu não gostaria de ter um filho, só isso.

- eu estava pensando em filhos esses dias...

- Puta que pariu! Não acredito! Você tá entrando nessa conversa mesmo?!? Sai dessa!

- ...

- Se tu tiver uma filha, posso comer quando ela tiver uns 14 aninhos?

- vai se fuder!

- Qual é, porra?!? É melhor ela perder o cabaço com um conhecido teu do que com um moleque ai qualquer com ejaculação precoce que não vai ensinar os prazeres de uma boa foda pra tua filha! Ai vai que por causa disso ela acha que sexo é uma merda, vira uma reprimida do caralho, e se torna uma beata chata no futuro? Eu tô te fazendo um favor!

- podemos mudar de assunto?

- Como queira... mas que seria da hora, seria, não? Até que tua mulher é bonitinha. Se tua filha só herdasse os genes dela, eu até pensaria em casar com ela... já pensou?? Seríamos uma família! Todo dia a gente ia...

- vai tomar no cu! Já falei que não quero falar sobre isso!

- Beleza, foi mal... vamos mudar de assunto.

- e aí, tá sabendo que o meu vizinho vai sair como vereador?

- Tô cagando e andando. Política... bando de fracassado.

- como assim? e aqueles que roubam tanto que ficam ricos?

- Esses daí tem que ficar adulando as massas, gastando seu tempo com imagem de bom moço! Prefiro beber meu Velho Barreiro e não ter que agradar ninguém do que ficar preso num terno adulando um bando de bosta como eu!

Se a economia vai bem, "vamos consumir"! Aí todo mundo enche o cu de comida, produtos inúteis, viram um bando de gordos sedentários na frente de uma TV com 500 canais só comprando, comprando e comprando... gastam 300 paus numa balada pra voltarem bêbados pra casa com uma dona que nunca viram na vida, para no dia seguinte ficarem pensando se contraíram uma doença ou não e sentirem a iminência da cirrose chegando...

Se a economia vai mal, nem precisa dizer... é nego passando fome, batendo na mulher, nos filhos, chutando o cachorro e mandando a vizinha tomar no cu! Enche a cara todo dia não porque tá comemorando como antes, mas porque tá fudido. Isso quando tem dinheiro pra encher a cara! Se não tem, vai ter que dar a bunda e chupar pau de bêbado pra conseguir uns trocados...

ou o que é pior, trabalhar...!

- eu gosto do meu trabalho.

- Ah, não vai me dizer que você acredita no seu trabalho? Ah, vá pra porra seu ...

- pelo menos eu ganho uma grana, tenho uma casa razoável e não fico o dia inteiro por aqui como você reclamando da vida.

- E tem coisa melhor que reclamar da vida? Meter o dedo na cara dos outros? Essa é minha terapia! Pra que ficar pagando 200 paus numa consulta com um broxa que acha que entende mais de você do que você mesmo só porque Freud era um reprimido?!? Acho que você precisa rever seus valores!

Por isso que eu falo, rapaz... o homem só pode ser a imagem e semelhança de deus mesmo... um filho da puta desse que criou um ser filho da puta que nem a gente só pode ser muito filho da puta mesmo! Tanta merda assim não pode ser só nossa culpa... haja fedor! Ele já sabia de tudo e fica rindo da gente!

- é aquela historia do "Advogado do Diabo"...

- Isso. Agora sim concordamos em algo. Já estava na hora...

- mesmo assim, acho que você....

- Puta merda, velho, não dá mais! Cê tá de brincadeira comigo! Vou dar uma cagada que é melhor! Ô Zé, traz outra cerveja, quer dizer... trás mais desse mijo aí que tu tá vendendo!

Aliás, tem papel higiênico no banheiro?!?



Raul Galhardi

20.7.08

Deserto

longe oscila
acena incerta
luz
ao alto açoita
o sol à sede

árido caminho

areia
arde
adere
suja

decerto
deserto
em mim



por André Drago

16.6.08

Casa de espelhos

reflexo reverso

nudez transversa
dilatada, disforme

isomórficos, alternos
não-ele, não-ela
ambos
se alteram

avesso inverso

por André Drago

15.6.08

UM GRITO CONTRA O HUMANISMO E O IDEALISMO!


Dialética é a típica visão de mundo daqueles que querem simplificar a realidade e enxergar tudo pautado em dicotomias... bem x mal, justo x injusto, direita x esquerda, belo x feio, corpo x alma etc. O que ocorre é que esta visão é típica do rebanho ressentido que, precisando se sentir seguro na existência, busca explicá-la de maneira simplista.


Nós criamos esta noção de ''Bem'' e ''Mal'', ''Justo'' e “Injusto'' devido a uma revolta contra a realidade. Uma revolta metafísica. Não aceitamos a realidade da maneira como ela é, com dores e prazeres. Queremos apenas o lado bom da existência! E criamos ilusões devido a isso. Explicações racionais ou religiosas (o que dá na mesma, pois ambas baseiam-se na busca da “verdade”, de um sentido no mundo) para o sofrimento na existência. Precisamos atribuir culpa a algo ou alguém, por que ''O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido'' (Nietzsche)! A busca pelo sentido surge da dor de existir.


Preferiremos colocar a culpa em nós mesmos (pecado) ou naquilo que está fora de nós (sociedade, família, amantes, trabalho, etc...) do que simplesmente entendermos que não existe motivo algum para estarmos sofrendo. A vida é assim: dores e prazeres. Criamos, devido ao nosso desejo de segurança, a religião, a ciência, as utopias... enfim, tudo aquilo que possa nos proporcionar um lugar no mundo, algo que dê sentido a nossa dor e que torne este mundo explicável e passível de ser controlado. “O homem preferirá ainda querer o nada a nada querer.” (Nietzsche)


A Vontade é o que move o mundo. Essa vontade se projeta constantemente para fora, como uma Vontade de Poder, de querer-dominar, de vencer resistências, uma sede de triunfos! Obter o máximo de prazeres e o mínimo de dores! Mas os impulsos que não se manifestam em ato, que não se transformam em ações, seja por fraqueza ou impossibilidade, se manifestam por outros meios... eis aí o surgimento da rebelião escrava na moral.


“A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento, a inveja, se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação”. (Nietzsche) O homem, esta fonte de impulsos, ao viver em sociedade, precisa limitar-se, privar-se da realização de todos os seus anseios. Para isto, busca limitar a ação dos outros, criando assim uma “igualdade na infelicidade”. Eis a origem da dita Justiça! O sentimento de igualdade surge dos reprimidos que desejam rebaixar ao seu nível os espíritos livres, aqueles fortes que transpõem as barreiras à suas vontades!


Sendo assim, é vivendo em sociedade que o homem se domestica, se torna “manso”. A falsa igualdade criada entre os homens pela fraqueza acaba por nivelar a todos, inclusive os fortes, os espíritos livres.


É devido a tudo isso, a essa tentativa de nos sentirmos seguros no mundo, de entendermos a existência e conseqüentemente controlá-la para aplacar nossa insatisfação perante a vida, que somos levados a querer adaptar o real ao racional (ideal), o ser ao dever-ser. Negamos a vida por que não querermos encará-la. Não queremos ser livres, preferimos agir de “má-fé”, como diz Sartre, ou seja, não queremos assumir a responsabilidade da vida, de nossos atos, em nossas mãos. É um fardo pesado demais para os fracos!

Por isso surge a idéia de liberdade coletiva, que nada mais é do que uma manifestação de fraqueza. Como o indivíduo não consegue assumir sua liberdade perante a vida, ela a joga para o futuro, quando todos forem livres. A liberdade coletiva, como a igualdade, nasce do sentimento de derrota. A própria palavra “liberdade” é contraditória com “coletiva”, visto que, se somos todos diferentes, como podemos erigir um modelo único de liberdade para todos? Quem determinará isso? Os intelectuais? Os revolucionários? A massa? Deus? O Estado? Por isso liberdade coletiva é opressão, é homogenização, é destruição das diferenças naturais entre os homens em nome de uma igualdade inexistente e desejada pelos fracos incapazes de assumirem seu lugar como indivíduos autônomos no mundo.


Se nada faz sentido, para que continuarmos existindo? Por que não sentamos no chão como as crianças inseguras que somos e choramos por pena de nós mesmos? Pra que prosseguir se não existe recompensa no final, seja ele o reino dos céus cristão ou o Éden comunista na terra? Esta é a resposta?


Muito pelo contrário! É a partir da perda da esperança, da crença no futuro ideal que encontramos nossa liberdade! Paramos de esperar e passamos a viver!


Albert Camus, existencialista, inicialmente amigo e depois rival de Sartre, afirmava que é justamente quando nos deparamos com o sentimento do Absurdo, ou seja, a falta de sentido da existência, que nos tornamos livres! Livres para criarmos nosso próprio sentido e sermos nosso próprio Deus! A única liberdade existente é a individual, que se manifesta na criação dos nossos próprios valores.


Daí em diante, surgem duas opções: ou se assume a própria liberdade perante a vida, com todas as conseqüências que isso trará, pulando no abismo da incerteza, ou se retorna ao estágio de ilusões, quando o indivíduo não se reconhece como livre, não quer encarar a realidade e continua a viver alheio a si mesmo, atribuindo sentido a existência. Por isso, ser livre é a sensação de felicidade advinda da coerência entre suas ações e suas idéias. Assim, a liberdade é individual, subjetiva e não depende de condições materiais, apenas do próprio ser. Para sermos livres é preciso VIVERMOS A LIBERDADE, não esperar por ela!


Estamos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca pisarmos, nem que seja por um momento sequer, num pedaço de terra governado apenas pela liberdade? Estamos reduzidos a sentir nostalgia pelo passado, ou pelo futuro? Devemos esperar até que o mundo inteiro esteja livre do controle político para que pelo menos um de nós possa afirmar que sabe o que é ser livre? Tanto a lógica quanto a emoção condenam tal suposição. A razão diz que o indivíduo não pode lutar por aquilo que não conhece. E o coração revolta-se diante de um universo tão cruel a ponto de cometer tais injustiças justamente com a nossa, dentre todas as gerações da humanidade.


Dizer ‘só serei livre quando todos os seres humanos forem livres’ é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, abdicar da nossa própria humanidade, definirmo-nos como fracassados.” (Hakim Bey)


Por isso atuar politicamente em nome de uma pretensa “liberdade coletiva”, ou em nome da “igualdade”, nada mais é do que uma reação de indivíduos fracos incapazes de aceitarem a realidade como ela é e de se impor a tudo aquilo que aparece como obstáculo à sua vontade. Freud explica. O desejo de ajudar ao próximo, o altruísmo, é a maior manifestação do narcisismo. Não existe auto-afirmação maior! O maior egoísmo consiste em querer moldar o mundo de acordo com seus valores e ainda ser reconhecido por isso! O generoso deseja o reconhecimento pelos seus atos e age como se fosse o detentor da verdade, o “libertador do povo”, quando na verdade "os que mais amaram ao homem lhe fizeram sempre o máximo dano. Exigiram dele o impossível, como todos os amantes." (Nietzsche).


Tudo se resume a UMA GRANDE MANIFESTAÇÃO DE INFANTILIDADE. Essas pessoas, todas crianças carentes, se refugiam no seu mundo ideal de justiça, no seu desejo pelo futuro, por não conseguirem enfrentar o presente e não se sentirem seguros, buscando de novo o seio materno, época na qual não precisavam realizar escolhas, arcar com a conseqüência delas e ainda eram amados incondicionalmente.

Para finalizar, por que esta obsessão, por parte daqueles que querem transformar a realidade, com o Estado? Por acaso acham que o poder está concentrado lá? Sim, eles acham! Mas de onde vem esta visão? Tudo veio de Rousseau, o pai da esquerda moderna, e como todo esquerdista um idealista, o qual acreditava ser o homem naturalmente “bom” enquanto a sociedade o corrompia.


(É incrível como temos a tendência de acreditarmos que nas épocas primitivas era tudo lindo e maravilhoso!).


Que miopia... a natureza é amoral! Não existe ''Bem'' e ''Mal'' presente nela! Nenhum ato é a priori bom ou ruim, já que somos nós os criadores de todos os valores. Criamos valores, ou seja, conteúdo para a realidade, ao analisarmos ela de acordo com um método, que se utiliza de uma linguagem. Portanto todos os conteúdos de valor são precedidos por formas de pensar que levaram até eles, formas estas extremamente diversificadas assim como os indivíduos. "Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo 'injusto', na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter." (Nietzsche).


É devido a esta visão de que a sociedade é ruim e o indivíduo é naturalmente bom que surge a visão de que, para mudar o indivíduo, basta mudar a sociedade, ou seja, tomar o poder do Estado. No entanto, afirma Nietzsche, "Toda filosofia que acredita removido ou até mesmo solucionado, através de um acontecimento político, o problema da existência, é uma filosofia de brinquedo e uma pseudo-filosofia".


Foucault pode nos ajudar. Na verdade, o poder está diluído na sociedade. Não existe superestrutura e infra-estrutura. O poder não se detêm, ele se exerce. Ele é ato, não potência. Todo poder vem acompanhado igualmente de um discurso de verdade que o legitima e ao mesmo tempo o reproduz, e vice-versa. Verdade e poder estão intrinsecamente ligados, o que nos leva a afirmar que não existe verdade, pois o que existe são discursos de verdade criados pela vontade de poder.


Logo, se o poder está presente em todas as esferas sociais (família, escola, hospício, prisão, trabalho, Estado, etc.) a atuação cotidiana dentro das limitadas áreas de cada esfera pode ser tão eficiente ou mais para transformar a realidade vigente, ou melhor, o sistema de verdades/poder existente, quanto uma atuação através de movimentos de massa que almejam a tomada do Estado. Na verdade é até mesmo perigoso essa tomada de poder do Estado sem uma anterior transformação dos discursos de verdade/poder, pois corre-se o risco de continuar a se reproduzir práticas antigas mesmo em uma nova sociedade, sendo este o maior erro e principal causa do fracasso de todas as revoluções!


Percebe-se que a lógica infra-estrutura e superestrutura foi totalmente aniquilada, assim como a noção de ideologia, pois para existir “ideologia”, pressupõe-se que existe também o seu oposto, ou seja, a verdade, e já que a verdade é uma manifestação de um discurso pautado numa vontade de poder, não pode-se falar em verdade, mas em discursos de verdade/poder. Logo, tudo seria “ideologia” e a verdade científica almejada pelo marxismo, positivismo e todos os demais discursos cientificistas não existiria.


Por fim, lutar por um pretenso ideal de justiça, liberdade (coletiva) e igualdade, além de ser uma manifestação de fraqueza, idealismo, uma fuga da realidade, um desejo de jogar para o futuro aquilo que não se concretizou no passado e no presente e que simplesmente nunca existiu na história da humanidade, também apresenta outra quimera que é a da impossibilidade de se discernir o quanto o seu discurso também não é fruto deste mesmo sistema de verdades/poder existentes, já que é impossível se pensar fora do momento em que se vive.


Conclui-se então que a situação é muito mais complicada do que se mostra e que os resultados pretendidos ao se atuar fora de si mesmo nunca serão os pretendidos, provavelmente até opostos. Mas todos os seres possuem a liberdade de se iludirem...


por Raul Galhardi

25.5.08

O ósculo





O ósculo se abre. E, de longe, contorna uma imagem. Leves choques acendem as extremidades de um corpo – o beijo de uma boca áspera. Deslocamento inerte – a luz imprime rastros bastante palpáveis. Atrasos – ondas curtas de euforia inócua. O foco é pleno, mas não distingue a figura que dissipa esse calor incômodo. Sons abafados ressoam muitas vezes, sem volume. Sem eco. Sem resposta. No frio enlace, algo me escapa. O ósculo se fecha.




André Drago
A pintura, de título "Ósculo", é de autoria de Vera Cymbron, que mantém o blog "Sentidos Ocultos"

22.5.08

Excerto

Um olhar para si


Ser humano é angustiar-se. Não há existência que não viva isso constantemente.

No entanto, viver é para poucos. Viver sinceramente, eu digo.

Por que sempre é possível refugiar-se nas ilusões, ou desistir.

Não condeno aqueles que desistiram. Condeno aqueles que se iludem.

Por que sei que viver é demasiado difícil e requer um exercício intenso de afirmação de si mesmo, mesmo sem ter aonde apoiar-se. Mas odeio aqueles que se iludem porque mentem para si mesmos. Ambos negam, porém.

A depressão, o momento máximo da angústia, faz parecer que vale a pena desistir.

Entretanto, aqueles que passaram por ela sabem que nada pode durar para sempre. O problema é se durar por tempo demais.

Não condeno os que desistem, mas não pretendo fazê-lo agora.

Hoje eu sou o escaravelho.




ÁPORO

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.


Carlos Drummond de Andrade



Por Raul Galhardi

16.5.08

Déspico

Ao caminhar em sua direção, a madeira daquela velha ponte rangia um pouco, mas isso parecia não atrair sua atenção. Parei um pouco antes de chegar ao seu lado, ainda num ângulo em que ele não pudesse me ver e disse "Oi". Ele calmamente se virou e, lentamente, subiu sua cabeça espiando-me por completo, até chegar ao meu rosto, calado. Fiquei um pouco constrangido e para disfarçar meu embaraço, sentei-me ao seu lado. Ele virou-se novamente e voltou a contemplar o oceano. Meio sem saber o que fazer, resolvi dizer algo:

- Eu sempre passo aqui quando venho buscar minha mãe. Ela vive na casa para idosos perto da cidade, logo no começo da estrada. Os médicos dizem que o clima daqui faz bem para ela.

Não há resposta. Aquela enigmática figura continua olhando para frente, ignorando-me. Talvez fosse um bruto ignorante. Talvez fosse só alguém sensível que estivesse admirando a paisagem, imerso em seus pensamentos, como se de fato eu nem estivesse ali. De qualquer forma, minha curiosidade atingia limites incontroláveis, e continuei:

- Sempre quando venho para cá e atravesso o porto, vejo você aqui. Neste mesmo local, sentado com as pernas para fora olhando para o mar. Há 5 anos, todos os finais de semana, eu faço este mesmo trajeto e sempre o vejo aqui. Parece até que você passa o dia inteiro aqui, pois já vim em diferentes horários pegar e deixar minha mãe e sempre o vejo. Após todo este tempo, não consegui controlar minha curiosidade. Enfim, posso lhe perguntar por que permanece neste mesmo local, nesta mesma posição, todos esses dias?

Ele parece continuar me ignorando. Não esboça reação alguma. Após um tempo, paro de olhá-lo e volto-me para frente, vendo o sol que se põe.

- O oceano traz uma sensação de grandeza, de unidade. Tudo está conectado por ele. Não só aquelas ilhas que você vê logo adiante, mas também todos os continentes presentes neste mundo. Se você conseguir imaginar isso, para de sentir-se sozinho. Às vezes fico pensando se alguém também olha para mim dessas ilhas.

Ele diz tudo isso com seu olhar ainda reto, imóvel e perdido, como se eu ainda não estivesse ali ao seu lado. Não digo nada. Após um breve momento, ele continua.

-É particularmente bonito à noite, quando as luzes de todas essas ilhas acendem e eu penso que elas estão tentando se comunicar comigo. Mas logo percebo que isso não faz sentido algum e volto à minha incômoda busca.

Eu me viro para ele, que continua.

- Mas seria mentira se eu dissesse que venho aqui apenas para contemplar esse gigante, para conectar-me. Algumas vezes pensei sinceramente em me jogar nestas àguas, mas não tive coragem o suficiente.

- Por que você está me dizendo isso?

Ele se vira e olha para mim, com a mesma calma e leveza do gesto anterior. Seu olhar é triste e sereno.

- Fiquei pensando se devia falar com você ou não. Resolvi por falar. Não era isso que você queria?

- Você não se sente incomodado por estar contando essas coisas para um estranho?

- Não, por que na verdade você não me é mais estranho do que qualquer pessoa desta cidade, daquela ilha, ou de qualquer uma destas ilhas e lugares deste mundo. Não se pode conhecer verdadeiramente ninguém.

Ele se volta para frente novamente.

- Quando fico aqui, olhando para o mar, lembro que existem tantos lugares neste mundo que eu não conheço e que nunca irei conhecer. Tantas pessoas, tantos momentos... como viver sabendo disso? Só um ser que pudesse estar em todos os cantos e que vivesse para sempre poderia absorver tudo que este mundo tem para nos proporcionar, mas parece que Deus foi egoísta ao guardar apenas para ele esse privilégio. Apenas um ser imortal e onipresente poderia desfrutar do todo. Eis então que surge uma questão: como continuar vivendo sabendo que Deus existe e que eu não sou ele? Como existir pela metade, imperfeito, sabendo que a perfeição existe? É demasiado doloroso.

- Mas não pense que eu acredito em Deus. Deus é um desespero que começa onde todos os outros terminam. Seria uma desonestidade intelectual se eu, sabendo de tudo isso, me rendesse ao transcedente, este lugar onde todos chegam após exaurirem a razão. Por isso continuo na minha busca incessante. Hunf. Parece que a felicidade e a quietude não fazem parte dos "planos" da existência...

Silêncio.

Quem é este homem?

- Você não se acha extremamente pessimista? Não quero discordar de você, mas não é possível enxergar as coisas de outro modo?

- E como poderia não sê-lo? Como sorrir enquanto todos não forem felizes? Um só será feliz se todos forem. Todos os seres são infelizes, mas quantos realmente sabem disso?

- Eu sou feliz.

- Você está satisfeito?

- Sim.

- Nada pode melhorar?

- Pode...

- Vê? É disso que estou falando. Somos movidos pelas nossas vontades, nossos desejos. Estamos sempre insatisfeitos. Não podemos simplesmente parar de desejar. A vontade se manifesta sempre em direção a algo, tangível ou não. Uma alternativa para isso seria a supressão total dos desejos, o anulamento da vontade, o ascetismo. Mas não acredito que isso seja possível, desejável e muito menos natural. Prefiro viver honestamente o meu sofrimento a ter que me refugiar da própria vida. O inferno está dentro de nós mesmos, não nos outros.

- Mas eu posso dizer pelo menos que sou mais feliz do que você...

- Sim, pode. A felicidade só é possível através do vislumbramento de uma desgraça maior, neste caso, a alheia. O limite de uma dor é outra maior.

Eu fico esperando que continue, mas ele se cala. Durante instantes, ele permanece inerte olhando para o horizonte. Estou espantado com este ser. Como pode ser tão calmo dizendo tudo isso? Eu penso em perguntar algo, mas não sei se devo. Hesito, mas, por fim, pergunto:

- Você não está esperando demais da vida, pedindo demais? Você quer tudo, a plenitude.

- E porque não querer a plenitude? O fim dos anseios, das dores, a felicidade de todos...

- Por que não é assim que a vida é.

- Então eu renego esta vida em nome do que ela não é. É por ela não ser tudo o que poderia que eu não a aceito. E busco. Espero conseguir sair daqui, incompleto e vivo. Tornar-se completo significaria unir-me ao oceano.

Após ouvir isso, percebo que já está anoitecendo. Fico encarando ele por alguns segundos, esperando algum gesto, algo mais. Olho para o relógio. Devo ir. Penso em dizer algo, mas o que poderia dizer? Acredito que tudo já foi dito. Pergunto seu nome.

- Meu nome é ...

Despeço-me e levanto. Saio dali. Ao caminhar em direção ao carro, olho para trás. O vejo na mesma posição anterior, como se eu não houvesse passado por ali. Embora não conheça este homem, desejo que ao retornar ele ainda esteja lá. Espero que ele não desista de buscar e não se entregue ao oceano.


por Raul Galhardi

5.5.08

Êxtase e Estase

esperamos o inevitável
esperamos o improvável
reunimo-nos em fila
seres estáticos

abrem-se frestas
na rija crosta de aço
fluidos misturam-se no asfalto
união de espíritos
colisão de carros

orgasmo do acaso
sujeitos do movimento
objetos do contato

estranho rito
de homens civilizados
aguardam docilmente
a selvageria do ocaso
sem nome, número ou lastro

propósitos misteriosos
o destino é sempre o ventre
quando devemos reconhecê-lo
e negá-lo

misticismo e gás carbônico
transe induzido pelo tráfego
seres extáticos


por André Drago

4.5.08

Aqui estou eu novamente do lado de fora de um hospital. Não gosto de hospitais. Não gosto de ver todos de branco, nem de imaginar as doenças que circulam lá dentro. Sabia que o branco no Japão simboliza a morte? Parece que os médicos descobriram.

Sento na calçada e encosto na grade do cemitério. Acendo um cigarro e dou uma tragada. A marca não interessa, pois o resultado final é o mesmo. Começo a pensar no quão mórbido (ou apropriado) é ter um cemitério ao lado de um hospital. ''Economiza tempo'', penso. Deus, como sou desprezível! Mudo logo de pensamento e lembro por que estou aqui. Não estou aqui porque gosto de hospitais, ou cemitérios, ou por que gosto de fumar sentado na calçada. Estou aqui por causa de Luana.


Nunca me importei com ninguém. Gosto disso. Assim ninguém se importa comigo também e com as besteiras que eu faço. Não que eu não precise de alguém, seja um lobo solitário ou algo assim, mas é que já me acostumei a viver dessa maneira. Com Luana é diferente. Imagine algo belo capaz de fazer sua imaginação voar. Nada se compara à Luana. Penso que fui um felizardo em poder viver ao seu lado. Fui? Não! Aqui estou eu de novo com minha amargura, meu pessimismo, falando dela no passado. Preciso pensar que tudo irá melhorar, que tudo terminará bem, pois... como é que é mesmo a frase? ''Tudo sempre acaba bem. Se não está tudo bem, então ainda não acabou.'' Isso. É assim que eu preciso pensar.


Quando percebo já estou acendendo outro cigarro. Ansiedade. Levanto e ando até a porta do hospital. Penso em entrar. Não. Eles não precisam de um bêbado fedendo a cigarro. Douglas e Verônica não precisam disso, Lúcia também não e muito menos Luana. Porra, mas que merda está acontecendo lá dentro? Que angústia! Sempre foi assim. Luana, por causa de seu problema, sempre necessitou de cuidados especiais. Eu, sempre que possível, a ajudei e estive ao seu lado, se bem que este ''sempre que possível'' não está adiantando muito agora.


Apago o cigarro e jogo a bituca no chão. Ando de um lado para o outro em frente à porta, pensando no que deve estar acontecendo lá dentro. ''Calma, não é a primeira vez que isto acontece''. Preciso me acalmar. Sento novamente encostado na grade esperando que nenhum pombo cague na minha cabeça.


Luana... que mulher! Que ser humano! Condeno Deus por ter feito isto com ela! Não me importo com nada, nem comigo, mas apenas com ela. Chorei ao seu lado quando sentia dor, segurei sua mão e não fiz nada. Nada do que precisasse. Ela dizia, ''Seu carinho basta.''. Não! Isso é mentira! Nunca se ama o suficiente, neste caso. Não quero chorar, mas parecia que não era isso que o futuro reservara para mim.


Eu não acreditava no que via. Estava em pé, mas minhas pernas tremiam. Não pensava em nada. Não conseguia sentir nada ao meu redor. Os pedestres aterrorizados, os enfermeiros e médicos desesperados, os repórteres curiosos e Douglas e Verônica aos prantos ajoelhados ao lado do corpo da filha, esmagado na calçada.


Aconteceu muito rápido. Ouvi um barulho de vidro se quebrando, e, antes mesmo que eu pudesse me virar ou a jovem que vendia flores ao meu lado gritar, ela já estava na calçada. A poucos metros de mim, eu via o corpo de Luana espatifado contra a calçada. Muita correria. Logo os enfermeiros saíram do hospital para ver o ocorrido e tentar fazer algo. Inútil. O caos já estava instaurado. Algumas pessoas vomitavam. Era horrível! Um pesadelo! E eu não conseguia fazer nada...


Flashes, câmeras, fios e mais câmeras. De onde saiu tudo isso? Acho que enquanto permanecia inerte, sem cair ou ficar de pé, a imprensa havia chegado. Abutres! Estava coberto pela multidão e acho que foi por isso que Douglas e Verônica não me viram, ou Lúcia, ao sair correndo em direção aos repórteres tentando agredí-los para que não mostrassem aquela cena hedionda em algum programa policial, como a atração do dia. Descartável. Efêmera. Não imagino como deve ser perder uma filha. Não tenho filhas. Tinha Luana e ela se foi. Como ela pode fazer isso comigo?!? Queria consolá-los, dizer o quanto ela era importante para mim, mas senti vergonha e, aproveitando que não fui visto, saí dali. Penso que foi melhor assim. Era meu último favor para ela. A pouparia desta última vergonha.

Coloquei um cigarro na boca ao chegar na esquina mas não conseguia acendê-lo, nem atravessar a rua. Comecei a chorar, discretamente. Hoje eu sabia o que me esperava. Tomaria todas e, quem sabe, ao acordar amanhã, me esqueceria de tudo. Mentira. Eu jamais me esqueceria. Coisas assim não acontecem todos os dias. Para gente como eu, só se ama uma vez.


por Raul Galhardi

2.5.08

Luar

A luz atravessa a fresta. Um feixe – um único feixe. Rajada – escorre vagarosamente do ventre ao chão, do chão à fresta. Sem feixe. Sem luz.

Peço que nos deixem.

Seu olhar é distante, infixo. “Se desfalecer, sonha?” Pergunto-me; talvez em voz alta. Seu olhar se fixa em mim.

Vento. Uma nova fresta – uma luz oscilante. Dispo-me. Aproximo-me – ele imóvel. Corto-lhe as roupas. Dispo-lhe. O abraço – afago seus cabelos. Ele treme. Afasto-me, ainda em seu colo, olho-o uma vez mais. Um outro abraço, um beijo. Seguro-o apertado, ele estremece forte, depois fraco, então não mais. Um líquido fumegante desce minhas costas.

Seu olhar é distante, fixo...

Levanto-me. A porta. Desejo água. Bastante.

A água percorre meu corpo e deixa-me, rubra. Visto-me. E a lua me ignora. Sob o galho de uma árvore me deixo ver. Estendo a mão, alcanço uma fruta, toco-a com meus lábios, sorvo seu sumo.

Sumo.


por André Drago